Aprendendo a ser

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Fá-lo-ei por eles e por outros que me confiaram as suas vidas, dizendo: toma, escreve, para que o vento não o apague.

19 de março de 2010

Homem sem arte


Era baixo, atarracado, calvicie espessa, pois só lhe restavam uns poucos fios em volta da nuca, fios ralos. Se dizia de grande impaciência para com tudo, evidenciava isso em preponderância com a família, a familia que fizera. Não, a verdade é que só com os filhos. Era um homem reto! A esposa era dotada de certa indulgência com as tolices do marido. Algumas vezes o bronqueava. Ele murchava logo apos, pois tinha grande devoção pela mulher. Ela que era dotada de grande valor para tudo que era de arte, jardinagem, corte-costura, cozinha, o que lhe conferia alguma elegância e delicadeza de gestos. Às vezes ele lhe cansava, dizia-lhe umas poucas e boas, contudo sem ferir-lhe demais, na serenidade de seu espírito.
Ele, dotado de certo poder linguajeiro, mais que a maioria dos homens daquele local. Argumentava facilmente e geralmente vencia tais embates, pelo grito e pela convicção, que em poucas pessoas se vê hoje em dia. Usava de algumas frases cruas, que assustavam qualquer um que entrasse em discussão com ele, mesmo aquelas discussoes ralas entre amigos à varanda de casa sobre a opiniao do que quer que fosse, como uma moça que fora desonrada. Também se valia de algumas irônias sem realce, nutridas pelo tom cáustico compunham a maneira de falar dele, outras vezes o silêncio e a cara de quem continha muita raiva acumulada. Seus verbos eram de matança, quando se dizia com raiva de alguém, tais como, degolar, matar, esfolar. Se fosse um homem de poder...Assistindo a reportagem policial dos jornais do meio dia ele se comprazia quando um assassino era cruelmente castigado, e a esposa quando ouvia seus comentários nao continha a surpresa com certa decepção pelo marido que tinha.
A impaciência do sujeito era algo incotido nele. Desde os grandes confrontos do seu caráter com o de outros homens até as pequenas falhas cometidas em casa, como deixar um copo em cima da pia sem ser lavado, era motivo de reclamaçao e ele podia reclamar horas a fio de tais frivolidade. Quando andava pela casa, ficava catando o que reclamar.
Ninguém atigia o seu grau de perfeição. Os filhos então, completamente aquém do seu padrão, quando ele não os diminuia, não acrescentava nada se algum conhecido o encontrasse na rua, e fizesse despercebido um elogio a um dos filhos, ele fazia sorriso sem vontade, sem encorajar os elogios que poderiam continuar a vir incomodá-lo.
Sim, ele só reinava solitário no alpendre da sua grande casa e sempre coxilando. A mulher era a única permitida a entrar naquele reinado, mas sempre se recusava a rede que ele oferecia no alpendre, pois ele sempre depois de trocadas duas palavras por coisas triviais, ou muitas palavras em que pudesse falar mal de alguém, dormia.
Verdade que pelo pouco esforço, tivera alguma sorte na vida. Bom emprego que lhe rendera uma aposentadoria gorda, a tranquilidade dos seus dias na grande casa em que podia espalhar toda sua preguiça o rendiam boas tardes de sono.
Telúrico! Isso eu nao tinha dito. Ou acomodado? Como poderia ser apegado ao local onde nascera se desprezava a natureza de muitos homens de lá? Uns canalhas! - ele dizia ao se referir nao somente a fraqueza de moral dos outros homens, como à despreocupação e vida boa que queriam levar, para isso contando com bebidas e mulher. O que parece até hoje composição agradável para alguns homens, ele condenava. Mas o que há de condenar na natureza de alguém por pobreza de espírito que tenha. Cada um dá o que tem. Velho clichê que nao se desgasta, pois é verdade. E ele, o que dava? Se ele mesmo sabia dar tao pouco de si para entes frutos dele, os filhos? Não entendia que muitos se valem do que podem para sobreviver, mesmo se utilizando por vezes de anestesiantes ou mesmo do outro. Ele nao ponderava nunca, pois estava sempre certo. Razoabilidade nao era para ele, mas a preguiça...
Orgulhava-se de nao ter o que fazer, de ter cumprido a sua luta. Há pessoas para as quais a vida é uma luta constante, tentando provar para si mesmo que não são incompetentes, se auto-afirmando: "eu sou!" Era assim aquele homem de pouco tamanho e muito orgulho, de cabeça exposta e coração fechado e tudo para esconder que nao tinha, nem soubera ter/fazer alguma arte na vida. O prazer da sua vida era que Dormia.

11 de março de 2010

Palavras avulsas

Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesmo...
Clarice Lispector


Talvez hoje seja o dia da não-palavra, embora pudesse ficar aqui, nesses devaneios que uma boa quinta-feirina pede, mas já que não são as palavras que contam, como já dizia ela: Clarice.
...E por vezes, diria eu, até complicam, afastam, simulam e tantas outras artimanhas de persuasão a palavra contém, que eu nao me atrevo a dizer. Por isso a opção de calar.
Os silêncios devem existir por algum bom motivo. Sejam constrangedores ou nao. Ali estão, prontos para serem silenciados e sentidos conforme o momento pedir.
Portanto, hoje, vou me reduzir a meu canto. Fazer as trivialidades do dia, ser engolida um pouco, mas só um pouco, pela obviedade das coisas, pelas poucas palavras nas relaçoes, pelo meu desalinhado sem precisar pedir desculpas, pelos reclames vãos, pelo cansaço desse sol abrasador de Fortaleza e pela insondável solidão, repleta de silêncio e do contato mais honesto comigo mesmo, que alguém, por puro amor, um dia, me concedeu, e tudo isso, para que eu nao fosse orgulhoso demais a ponto de pensar que o outro seria tao ligado a mim, a ponto de nao me deixar sozinho, que o outro só era outro porque era o ponto para o qual eu olhava, enquanto esquecia de olhar pra mim
Esse outro...distante, indefinido. Eu só poderia olhá-lo com algum discernimento se um dia eu olhasse para mim com plena aceitação . Ah, o outro...deixa o outro com os problemas dele. Deixa o outro "SER" displicentemente. Tão pequeno como você. E os problemas? Só sao maiores que ele, porque ele é pequeno. Os seus meus problemas são do tamanho que eu vejo.
Se puder fazer algo grandioso, faça por você mesmo. E serás grandioso para ti e para o outro, se lhe convier.
A minha pequenez diante das coisas nunca me foi problema.
Difícil é reconhecer o próprio tamanho, o resto é...próximo! alguém pode falar melhor que eu...

5 de março de 2010

Não gostar


É um tal enfado. É não querer ver. É encontrar-se sem querer e virar o rosto por querer. É ter a alma deserta. É ver a morte de ti no outro. É ver a morte do outro em ti. É perturbar-se ao encontrar uma lembrança do que foi. É ficar sério ao olhar uma foto de ti sorrindo com o outro. Quanta contradição, como posso já não gostar, se gostar está para tudo que há no mundo, pois o mundo nos encanta, nos faz gostar!....e não gostar? poderá ainda ser um sentimento profundo? Não é nem esquecer-se...Pena não ser simplesmente um esquecimento, porque o esquecimento é um conforto da angústia, ou uma angústia conformada pela ausência aceita, declarada, ou nao delcarada, que veio de uma distância que não foi combinada, mas friamente subtendida. É andar sorrindo entre os amigos, mas na presença inesperada, que vem no corredor, o rosto congelar-se, porque sorrir não é mais aqui para nós, mesmo por sorriso anterior não é permitido para alma, que sentir-se-ía mentindo se continuasse sorrindo ao te ver, se nao mais me sorris, nem mesmo ensaias um pequeno sorriso amigável, mesmo que os amigos venham de lado, a presença do não-amigo é motivo mórbido para o fim de um sorriso que pertencia de uma outra alegria, por isso era negado. É o susto súbito do conhecido para transformar-se em des-conhecido, mas nao é o contrário que normalmente acontece? Não gostar...como eu queria, eu saberia talvez, senão tivesse aprendido a gostar daquela companhia. Não gostar é o coração que vinha andando tranqüilo por ai e estalar, tensionar os músculos da face num inexpressivo não gostar da presença não aceita e fechar-se bruscamente.
É apressar o passo, é o fim de toda calma, de toda alegria. É se agachar para não ser visto, é por a mão no rosto, tampar a vista, porque a ferida não pode mais ser exposta. É não confessar uma palavra sequer, é por vezes até concordar se um outro falar mal, é não dar mais de si, porque o outro não merece? É não fazer falta, é não existir mais de alguma forma, é uma morte súbita, é sentir-se morto, morto para o outro. Já não és visto [ou pelo menos não visto de boa vontade], é não falar, é não ouvir mais a voz do outro senão por meras coincidências, mas palavras dirigidas a ti? Não mais. Talvez nunca. É o completo não, é não encarar, é não ter importância nenhuma, mas quem suporta ser esquecido?
É não ver necessidade de um objeto em um canto da casa e jogá-lo, dá-lo a alguém. É o próprio incômodo da imagem ao teu olho que cansa só de olhar. É o excesso de algo que não te faz falta, ou falta te faz e para não sentir-se o recordar da falta, fecha-te para não reconhecer a falta que esse alguém te faz, é não ver no outro algo de você, é achar que o outro não é digno da tua boa companhia, é o não reconhecimento daquela figura ou a percepção de que nunca a conheceu de fato, senão não te terias surpreendido com o susto que um não gostar pode proporcionar. Não gostar é a ressaca de ter gostado. É o cansaço de ter dado algo em vão. Não gostar é sentir-se com razão para não gostar. Mas uma hora, sem que esperes, chega de nãos, pois para a vida acontecer é preciso um sim. A vida não é ser uma pomba idiota que ao ver gente sai desesperadamente a correr para alçar vôo. Não gostar é tão fácil, é ocasionado por uma incompreensão súbita, um embassamento de janelas que você não quer mais se dar ao trabalho de limpar, porque dá trabalho gostar. É o que toda relação de valor precisa suportar para seguir. É a passagem súbita do gostar para o não gostar a ponto de que à alma não deu tempo de se acostumar a não gostar e daí o incomodo, o não saber lidar. É a anestesiar-se para não sentir o que o outro ainda causa em ti. É assistir o outro de longe, incomunicável, é ser uma paisagem sem essência, que nada diz, que não chega a teu coração. É arrepender-se de ter gostado, é voltar atrás na decisão, é desdizer, esquecer uma porção de coisas e as que não esquecer, não procurar lembrar, é não saber se tem razão, mas ir a finco que tem razão e desconsiderar uma razão do outro? Que razão! Fala-se aqui de emoção e essa como hei de controlar? Mas insisto em não gostar. Não gostar é descompensar, é a perda de um significado, é supor que tudo já foi dito. É não rir com o outro, é por vezes, é rir do outro, quando alguém comenta discretamente contigo uma suposta falsidade do outro e tu, tolo, vens a concordar, mesmo sem ter ouvido bem o comentário e mesmo que nao venhas a concordar, concordas, para nao descordar de quem tu gostas e ainda solta aquele sorriso sarcástico de confirmação, ou mesmo, aperta a mão daquele que falou mal do teu desafeto, numa cumplicidade estranha. Concordar de não gostar é a pior cumplicidade: é a grande pobreza. É um gosto que vem de um desgosto, por isso, nao é gostar.
Ah, não gostar...é tão fácil! É fácil sim a passagem surpreendente do gostar para o não gostar, mas o contrário também se confirmar, senão nao existiria o fazer as pazes. É fácil gostar também. Escrevendo as razões, como quem escreve um tratado, repleto de razões para não gostar, uma vez que hoje senti não gostar alguém de mim, essas tolas razões, os pontos e contrapontos que carrego em mim, como minhas desculpas por não conseguir desgostar e minhas tolerâncias, desculpas concedidas mesmo sem serem pedidas para quem não consegue gostar e todos nãos e dizendo não a toda a hora e eis que um mero sim me veio abrir o fechado coração que estava para o não gostar, como um carinho inesperado está para o gostar. Então o inesperado aconteceu. Alguém lembrou gostar de mim e o telefone atendeu esse chamado. Surpreendente como em poucos instantes, eu que estava decidida a nao gostar passei a gostar da vida inesplicávelmente. E naquele instante eu percebi como não gostar é a própria desorganização da alma e como gostar, inevitavelmente reoganiza tudo. Faz tudo voltar a seu lugar. É anti-natural não gostar a quem a vida te ensinou a gostar desde as primeiras palavras que trocaram sem saber se iam se gostar. Eu que até então, naquela tarde sonolenta já estava até gostando de não gostar, um toque de telefone me fez lembrar o que é gostar. Ah, é tão melhor, é se entregar...
É um festejo íntimo, ou claramente compartilhado, a que o outro pode tomar conhecimento ou não. Na maioria das vezes sim. Não dá para evitar a efusão. A voz alegre que não consegue se conter diante da alegria de descobrir gostar, é falar alto, é o sorriso desenhar-se nos lábios em poucos instantes. É toda espontaneidade sem o medo da rejeição, enquanto todo não gostar é apenas a negação forçada do gostar, porque o gostar, de alguma forma fica, nem que seja na tua mais remota lembrança. Gostar é entregar o que há de bom em si sem receios, sem vigilâncias, sem avisos prévios do rosto para armar-se a nao gostar.
Gostar é expor o rosto, é andar despreocupado, calmamente, é falar despreocupadamente, desarrumar a mesa, é abrir a mão, é sentar no chão, é horas no telefone. Gostar é maior que não gostar e como uma tal riqueza de sentimento, vence.
Gostar!
Eu vou continuar. Não vou guardar de mim a sete chaves o que gostar, um dia significou pra mim