Aprendendo a ser

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Fá-lo-ei por eles e por outros que me confiaram as suas vidas, dizendo: toma, escreve, para que o vento não o apague.

6 de fevereiro de 2010

O Batuque do Guarda-chuva lilás

Olhava para ela como quem olha algo que não terá a seu alcance. Todo dia ele a via mais bonita. Se arrumava, se pintava e saia. Da janela da sua casa ele quase que podia descrever todos os movimentos daquela mulher que exercia sobre ele tamanha obsessão. Sempre apressada e, no vigor daqueles passos destemidos, talvez tentasse enterrar a lembrança de um profundo incômodo. Batia a porta com força. Essa força tamanha parecia incompatível com os modos sempre tão bem portados daquela mulher, cuja a educação era irrepreensível. Seus gestos eram sutis e, em atitude espontânea, mas de quem tem consciência da própria beleza, movimentava-se na inquietude sensual do vestido preto. Todo dia a mesma rotina. Se arrumava , se pintava e saia. Nas mãos límpidas e de unhas bem feitas, uma bolsa de grife e um guarda chuva de uma cor tão incomum, tão inexpressiva, tão vazia de significado, que ele julgava desnecessário para a composição daquele perfil tão clássico de mulher.
Era lilás o guarda-chuva.
Ao se assegurar de que não havia esquecido nada, lançava um olhar tão indiferente quanto brilhante para casa ao lado, e aquele brilho incontido e indecifrável quebrava a hostilidade aparente, pois os brilhos quebram qualquer impressão de indiferença. Engraçado que aquele homem que a observava com tanta clandestinidade e agudeza, podia descrever cada passo, cada mínima atitude daquela mulher, só não conseguia captar a expressão do olhar.
A inutilidade do guarda-chuva, para ele, se devia ao fato de nunca chover. Todos os dias o sol inclemente queimava com mais intensidade, e inevitavelmente deteriorava aquela expressão de traços finos e delicados e ia, aos poucos deixando as marcas cansadas que só as longas esperas deixam. Essas marcas se revelavam pela constância de olheras eram tão lilases e presentes quanto a companhia daquele guarda-chuva ausente. Tentava disfarçá-las com maquiagem, mas, de fato, só ela saberia a profundidade delas.
Era tão metódica, que sentia a necessidade de levá-lo todo dia consigo, mesmo sabendo que não iria chover.
O guarda-chuva abria, um coração se fechava.
Quanto mais força ela dedicava a esse ritual, maior era sua tentativa desesperada de fechar-se para o mundo. Abria-o só para que o mofo não o deteriorasse. E aquele olhar, antes indecifrável, tornava-se claro ante a visão de uma abertura tão sem recusas como aquela, mas os dias que se seguiam, sem esperança de inundação, ou quem sabe até de um dilúvio que pusesse fim ao seu tormento tão igual, eram imutáveis. Era tudo isso que ela precisava.
Ele só saia depois dela. Temeria um encontro frontal, com aquela mulher tão independente e ao mesmo tempo tão dependente de um objeto? Ela poderia alegar precaução, caso fosse inquirida sobre a necessidade de um guarda-chuva de dias de sol.
O suor escorria entre o decote que comportava formas tão fartas. E sabe-se lá onde ia se depositar. O vigor com que segurava o guarda-chuva o enciumava. Teria ela, um dia o segurado com tamanha vontade?
Naquele dia, ela fez tudo igual, mas esqueceu o guarda-chuva. Já estava distante de casa quando se lembrou. Não poderia mais voltar para buscá-lo. O guarda-chuva ficara esquecido no canto da porta. O dia transcorrera sem maiores transtornos. Ainda bem que o dia estava limpo, constatou ela. Ao anoitecer, porém nuvens pesadas foram se formando até que o tempo se fechou por completo. Perdera até a carona da amiga de trabalho. No fim do dia tudo estava dando errado. Saiu na esperança de não ser transbordada pelo que tanto temia.
A chuva começara impiedosa e fora tão veemente que desmanchara todas as carcaças que durante o dia ela tentava encobrir. A maquiagem escorrera. O cabelo desmanchara-se. A roupa colara-se ao corpo quase como segunda pele, mostrando por completo aquelas formas tão rijas e bem desenhadas, que ela escondia dentro do vestido preto. Tremia. Estava furiosa pelo esquecimento daquele objeto que julgava tão importante. Esperava o sinal fechar para que pudesse atravessar a rua. Um carro jorrou água nela. Daí perdera por completo a compostura. Disse um palavrão com o motorista. Nesse momento, uma figura inesperada se pôs de pé ao seu lado, de cabeça baixa e com um risinho de canto de boca que tentava conter a muito custo. Um pequeno sorriso incontido, como quem se enche de uma satisfação íntima. Não a olhou de imediato, foi abrindo o enorme guarda-chuva . Ela se sobressaltou com o batucar impactante do guarda-chuva. Deu um gritinho e três pulinhos bem femininos que o fizeram escancarar o sorriso. Fez uma expressão de surpresa tão artificial ao encará-la, que parecia ter sido ensaiada a tempos.
Não ofereceu abrigo no guarda-chuva portentoso, apenas o colocou acima dela. Ela permaneceu imóvel, mas aceitou relutante o abrigo. Calados e imóveis. O sinal já havia fechado. Ele que já estava de posse do guarda-chuva, se apoderou agora daquela mão que ele tanto queria segurar e seguiu resoluto no domínio do que tanto invejara e ao lado do que tanto desejara.

Um comentário:

Jéssica de Sousa disse...

*-*
oooowwn
adorei *-*
mto perfeitinhas as sensações, senti cada uma, juro pra ti